quarta-feira, 3 de julho de 2019

Ultra Trail Serra da Freita, 29 de Junho de 2019

Como começar uma linda odisseia que começou no Verão de 2018 num almoço de fraternidade envolvendo quase toda a família dos Amigos do vale do Silêncio?
Bastou "alguém" alvitrar, vamos à Freita o ano que vem? Custou-me a acreditar no momento que todos os que ali estavam tivessem dito que sim, mais pasmado fiquei porque ainda nem sequer tínhamos entrado para dentro do Restaurante e toda a gente estava entusiasmada com a ideia, confesso que não acreditei em nada daquilo, o certo é que após o almoço o compromisso foi selado num Papiro a que poucos se iram negar! 
Foi aqui que comecei a conhecer melhor todas as personagens desta Odisseia na Serra da Freita que a partir do dia 1 de Janeiro de 2019 iriam iniciar um longo processo de preparação física e psicológica para enfrentar então o Ultra Trail Serra da Freita a 29 e 30 de Junho de 2018 na distância de 65 kms, com Altimetria + de 3.500 metros!
Foi longo todo este processo, treinos prolongados todos os fins de semana que iam dos 20 aos 40 kms, sempre em caminhada e raramente a correr, os tempos variavam entre entre as 5 e as 9h em cada sessão, 24 treinos = 600kms = 150h, dando uma média de 15m por cada km. Esta foi uma disciplina imposta para quem se disponibilizou para fazer a Ultra da Freita, ao mesmo tempo o factor psicológico também caminhou ao lado de cada um em cada momento que se ia lembrando as belezas e as amarguras que
se iriam viver quando tivessem de enfrentar a Serra da Freita, todo o trabalho psicológico funcionou bem, até porque alguns dos membros que iniciaram esta longa caminhada acabaram por aderir em definitivo sem complexos a este desafio das suas vidas até então.
Recordo a 1ª vez que fui à Freita em 2010 quando ouvi da boca do José Moutinho no breifing que faz todos os anos na véspera da prova a explicar que para fazer a Freita todos os atletas têm de praticar por vários kms a prática da caminhada porque a Serra não permite a corrida durante muito tempo, eu e muitos ficámos arrepiados pois treinara muitos kms e não dera sequer um passo em caminhada! 
As características do Regulamento da prova permitia que fizéssemos a gestão da nossa preparação sem causar depois na prática distúrbios à Organização, as 28h concedidas eram mais do que suficientes para todos sairmos de lá vitoriosos, mas vamos por fases...
Partimos ás 06h em conjunto com os atletas da prova de 100 kms, o grupo dos Amigos do Vale do Silêncio era composto por 12 atletas participando no Ultra trail de 65 kms, nesta prova participava também o nosso amigo Vitor Pinto representando o seu Clube Arrábida Trail, mais tarde mais duas representantes do nosso Grupo iriam participar na Caminhada que dada a partir do Merujal a cerca de 12 kms de distância.
De forma natural os AVS organizaram em 2 grupos, 1 grupo com 4 atletas para fazer a prova mais
rápida, correr e andar e o outro com 8 atletas apenas iriam caminhar, excepto 1º km que seria, e foi a correr, foi isto que planeámos foi isto que aconteceu.
Pessoalmente estava receoso, não pelo percurso nem pelas dificuldades que iríamos ter pela frente (aqui ainda não conhecia as alterações que foram feitas há 2 anos a partir da "Besta", mas sim pelos eternos problemas com a ingestão de alimentos durante a prova, para combater isso levei desta vez uns biscoitos para ir comendo com alguma regularidade e não deixar que o estômago ficasse vazio como de costume, aliás grande parte das minhas desistências na Freita (5) devem-se ao estado de fraqueza e à exaustão por falta de alimentação, é um problema que não consigo combater. Consegui levar o saco com os biscoitos até ao Tibelhão, pedi no abastecimento para ficarem com ele e o levarem até à meta, ainda não tinha comido nada e só estava a fazer peso e incomodava.


A chegada a Tibelhão foi espectacular, a levada ia com um bom caudal tornando o ambiente bem alegre em todo o grupo, há muito que já não víamos atletas à nossa frente, de vez em quando alguns cantarolavam umas músicas, de entre elas estava a nossa balada feita especificamente para esta prova, não houvera muito tempo para a ensaiar, mesmo assim aqui e ali sempre saíam umas notas para animar, no final da levada uma mini cascata aguardavam por nós, o tempo já estava quente e o dia prometia na criação de mais dificuldades para todos nós, refrescámos e seguimos até um pouco mais à frente onde estava o abastecimento onde eu deixaria o saco dos
biscoitos e tentava comer qualquer coisa, melancia e batata frita, foi o que consegui comer mas em pequena quantidade, o estômago já estava com ânsias e a barriga a desestabilizar, começava aqui o martírio que se iria prolongar até chegar a Arouca. Do Tibelhão até Bondança 3º abastecimento
tivemos connosco um novo "vassoura" que ao chegar ao sopé da "Sra. Besta" se  voluntariou para ir para a frente do grupo ajudar a subir aquele difícil obstáculo, era ali que estava o nosso foco principal, tinham decorridos 25 kms e todo o grupo estava bem, nada a destacar, mas a minha surpresa maior estava ali a começar, aquilo que eu mais receava neste grupo inexperiente era a ascensão daquela "Besta", pareciam um grupo de meninos a brincar a sério, paulatinamente  iam por ali acima entre ajudando-se como se já tivessem a lição bem estudada, creio que para isto muito contribuiu o Paulo Nunes, o "Vassoura" que se tornava a partir daqui o guia e Sr. da "Besta", dando instruções, não só na ascensão inicial mas também na parte mais perigosa a partir do meio onde a água escorre em sentido contrário. Sabedor da minha queda e desistência ali naquele local o ano passado que me levaria ao internamento no Hospital da Feira, o Paulo não me largou mais,
indicava-me todos os sítios onde me devia agarrar, quer as mãos quer os pés, puxava-me sempre que eu precisava de auxílio, era a minha 6ª vez que subia isto, para trás ficavam as experiências que ali vivi sozinho sem ajudas, agora tinha ali os amigos e este Sr. com H grande que quase me levou ao colo, fica aqui o nosso obrigado! Um a um todos os nossos amigos do grupo iam saindo do "buraco", reagrupámos no alto e seguimos rapidamente rumo a Bondança, próximo abastecimento, aqui dá-se a primeira surpresa para mim no percurso, em 2018 desistira na "Besta" e por isso não fiquei a saber o percurso que seria o mesmo este ano, em 2017 tinha seguido por Manhouce agora era por Bondança, uma povoação ligeiramente à direita, que passou a ser a base de apoio da prova naquela zona, como era esperado a mudança não foi para melhorar o percurso da prova (antes pelo contrário) muito perigoso e difícil mas sim torná-lo mais prático face ao prosseguimento da prova. Foi penoso para todos chegar a Bondança, os efeitos nefastos da prova realizada até ali
começavam a surgir, cansaço e dores nas articulações começaram a surgir, nesta etapa a partir do planalto da "Besta" a água escasseia, não existem pontos de água e Bondança custa a aparecer face ao arredondamento da Serra que não a deixa ver, de repente quase do nada Bondança aparece, amigos a saudar a nossa chegada recordando anos anteriores que vão até 2010. O pessoal do nosso grupo aproveita o abastecimento para se alimentar bem, eu aproveito para dar uma volta pelo exterior da casa, casas de banho ali não há, um problema que tem de ser resolvido, mulheres e homens quando ali chegam as necessidades são muitas e a solução não pode ser atrás da oliveira ou de um eucalipto qualquer. Para mim foi mais uma passagem em branco pela banca da comida, safei-me apenas com alguns pedaços de tomate, era a única coisa que o estômago consentia, pelo menos tinha a esperança de assim conseguir chegar à Lomba, a etapa seguinte. Partimos de Bondança novamente com uma subida, não muito alta mas muito inclinada, o Paulo Nunes continuava
connosco a ajudar-nos, também ele já nutria grande simpatia pelo nosso grupo e fazia tudo para nos ajudar, depois de muito andarmos chegámos de novo ao planalto fazendo uma nova paragem para descansar um pouco, um tanque enorme cheio de água corrente e bem fresca serviu para eu arrefecer um pouco as pernas até à altura do joelho, do grupo era já visível o cansaço mas a disposição era ainda excelente. Eu sabia que a partir dali agora ia ser a doer, não sabia é que era tanto, a descida para as porqueiras destruiu quase por completo o ânimo que todos trazíamos até ali, para além de perigoso a inclinação era dramaticamente inclinada, a descida fez muita mossa, bolhas, unhas, articulações e muita luta para manter o equilíbrio sem cair. Era já quase noite quando chegámos ao Rio Teixeira e de imediato entrámos a subir nas escadas do martírio, apesar da inclinação acentuada e da infindável quantidade de degraus o sofrimento foi menor do que a descida que acabáramos de fazer, lentamente fomos subindo até que a Aldeia da Lomba nos aparece quase como uma imagem salvadora de uma equipa quase a morrer afogada. Era aqui que eu mais queria chegar, era a abençoada sopa que eu acreditava que me ia salvar e permitir a recuperação de algumas forças suficientes para conseguir chegar a Arouca, do nosso grupo fui dos últimos a chegar ali, deitei-me um bocado para recuperar as forças e só depois é que a Susana (a minha filha) me veio trazer uma sopa que encaixou muito
bem no estômago acalmando um pouco o vazio que por ali andava. (A minha filha tinha-me feito a grata surpresa de me informar em Junho que vinha fazer a prova para estar perto de mim e ela própria viver também o que é de facto a Freita, eu já cá tinha vindo 7 vezes e em cada uma delas levei sempre uma história diferente, um joelho arrasado, 10 quedas no Rio Paivô, um braço com um corte muito feio que me levou ao hospital, um osso da cabeça partido com afundamento na "besta" etc, e por tanta curiosidade decidiu inscrever-se e acompanhar-me, claro que admirei a sua coragem e estava a gostar imenso de ali a ter comigo acompanhando-me até chegar à meta) Na Lomba a paragem foi longa, o pessoal do grupo estava de rastos, cada um procurava recuperar conforme podia, eu pelos problemas que tinha pouca atenção dava à rapaziada, valeu aqui alguns elementos do grupo ainda com maior discernimento iam ajudando os mais cambaleantes, algum tempo depois as coisas voltaram a recompor-se, entretanto chega o Vitor Pinto que após terminar a sua prova em Arouca partiu e ainda veio apanhar-nos aqui na Lomba, a sua intenção era apoiar-nos ali e depois partir para Albergaria da Serra (último abastecimento) e a partir daí ir connosco até Arouca, mas não foi isso que aconteceu, chegou ali à Lomba viu o estado em que alguns elemento estavam e decidiu acompanhar-nos a partir dali, o objectivo era todos chegarem, ele apesar de representar outra
equipa fazia também parte deste grupo desde a 1ª hora sentindo-se na obrigação de ajudar nesta fase tão difícil da prova. Nenhum de nós sabia o que nos esperava, aquela subida que se seguia era brutal, o Vitor já a tinha feito horas antes e confidenciara comigo a sua dificuldade, partimos com determinação e só a força de vontade e a força anímica permitiram que lá chegássemos acima, de rastos, todos, mas chegámos, as queixas eram muitas cada qual tinha as suas e tinham de conviver com elas, à nossa frente havia apenas mais um abastecimento e logo de seguida era a meta no fundo da Serra em Arouca. A noite estava escura, a lua tinha para aí 1 centímetro de largura, sem vento mas alguma fresquidão, os frontais estavam a aguentar-se, as pernas de cada um de nós iam aguentado com algum esforço, os organismos de cada um iam nos pregando partidas que nos obrigava a alguma contenção provocando naturais mal estar, o PR7 foi ultrapassado com cuidados extremos face à fragilidade em que todos vínhamos, todos passámos sem qualquer
problema, a descida final foi caótica para todos, a chegada final foi apoteótica, a emoção abraçou-nos e ali as lágrimas escorreram pela nossa cara, não só pelo sofrimento da dor sentida, não só pela alegria de chegar, não só pelo objectivo conquistado mas também pelo carinho e aplauso dispensado pelos presentes à nossa chegada. Foi mais uma página que se virou, a Serra da Freita pela sua magia jamais sairá de mim, até breve e um obrigado do tamanho do Mundo a esta equipa dos AVS que me acompanhou e selou com sangue e sofrimento um feito que jamais esquecerão. 

À organização na pessoa do José Moutinho e Flor Madureira o meu muito obrigado pela atenção e simpatia para connosco!






5 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom companheiro, és uma força da natureza.
Fantásticos os teus companheiros de aventura. Susana e Daniel enormes como sempre.
Muitos parabéns para todos os AVS.
Grande abraço.
António

JoaoLima disse...

Muitos parabéns!!!! Sem palavras...

Um grande abraço

Nuno Cabeça disse...

Quem sabe nunca esquece!
Muitos Parabéns!

Fernando Silva disse...

Senhor Joaquim Adelino, depois de ler o seu texto fico com a certeza de que muitos grupos gostariam de estar a viver o mesmo desafio.
Não sei se volta a Serra da Freita mas todos temos uma certeza ...."se voltar não será igual", porque não temos 2 sonhos iguais nem a mesma agua passa 2 vezes debaixo da mesma ponte.
Da minha parte muito obrigado por lançar o desafio(da próxima vez vou pensar mais tempo antes de dizer que sim), a Serra da Freita é única mas fiquei com a sensação de que não nos quer lá muitas vezes.
Mas tenho uma certeza de quem conclui o Trail da Freita dificilmente deixa de concluir outros trails .

Filipe Torres disse...

Cruzei-me com o vosso grupo no PR7 e reconheci-o logo. Fico muito contente por terem, em equipa, consigo virar aquela grande epopeia. Um agrande abraço, boa recuperação!