O Ultra Trail dos Amigos da Montanha realizado no dia 25 de Novembro em Barcelos é uma daquelas provas que se faz uma vez e que por uma razão qualquer queremos sempre lá voltar. Queremos voltar porque existe sempre alguma coisa que ficou por fazer e a mim aconteceram várias que quero melhorar, não é o tempo final que me importa mas coisas simples de mais que me complicaram a vida e fez deste Trail um dos que mais me custaram a fazer, mas eu conto...
Já o ano passado tinha pensado muito em fazer esta prova mas a desilusão da Serra D`árga e o facto de ser também no Alto Minho resfreou um pouco a vontade de ir, por isso aproveitando a simpatia do amigo Carlos Coelho em me dar boleia inscrevi-me este ano ainda com a esperança de 2 Amigos do Vale do Silêncio me fazerem companhia, coisa que não iria acontecer.
Até à hora da partida contei sempre com a companhia dos amigos do Mundo da Corrida, foi ao almoço, ao jantar e até no Albergue (cedido gratuitamente pela organização) estava bem acompanhado por eles, agradeço-lhes com gratidão toda a simpatia que me dedicaram.
A prova tinha a distância prevista de 57,500kms e tinha uma condicionante extremamente importante, se quizessemos chegar à meta tínhamos de chegar ao Rio Cávado até ás 16,45h ao fim de 51kms para podermos atravessar de Kayak até à margem contrária, se assim não fosse ficaríamos de imediato eleminados.
A partida foi dada junto à Igreja e ao sinal da 8ª badalada, não éramos muitos, a organização falava em 190 inscritos e por isso a partida fez-se sem qualquer sobressalto e sem pressas, adivinhava-se já as dificuldades que cada um ia encontrar. Tal como eu havia por ali alguns atletas optaram por levar os bastões como auxiliares na progressão quer nas subidas quer nas descidas e ainda na manutenção do equilibrio para evitar as quedas já que o caminho para além de sinuoso tinha também muita lama e era também escorregadio. Desde cedo fiquei para os últimos lugares, bem perto vinha o Carlos Coelho e a Analice bem como outros atletas que com prudência partiram mais lentos. Rapidamente concluí que a decisão de levar os bastões foi muito acertada porque a partir dos 2 kms iniciais feitos no asfalto começou a dança do sobe e desce, com pequenos percursos de recuperação, que nos levaria a pisar os picos daquele amontoado de serras com inclinações muitos acentuadas quer a subir quer a descer. A 1ª parte da prova foi muito exigente e obrigou a que tivesse um desgaste tremendo de energias devido ás dificuldades que íamos encontrando, nesta altura já ia a poupar os joelhos devido ás fortes inclinações, principalmente nas descidas, mas também as subidas deixavam mossa, isto devido a uma forte dor no pé direito que já vinha sentindo a algum tempo atrás e que me acompanharia até final da prova. Foi agradável de ver por ali um grupo numeroso de BTTistas a fazer o mesmo percurso que nós, mas nas subidas mais agrestes nem um conseguia fazer aquilo a pedalar, alguns ainda me fizeram companhia na conversa enquanto rebocavam a bicicleta montanha acima.
Nesta fase corri quase sempre sozinho, por vezes levava a companhia da Célia Azenha, do António e do Jorge do Mundo da Corrida e também em alguns períodos da Otília Leal, mas variavelmente acabava por ficar para trás para mais à frente apanhá-los de novo e assim sucessivamente. Por volta dos 27 kms encontro a Otília numa descida agarrada à perna esquerda, estava com uma câimbra mas após uma pequena ajuda logo ficou em condições de posseguir e manteve-se ali perto de mim para o caso de voltar a ter problemas.
Pouco depois surge um dos locais já esperados, atravessar o Rio de Slide, desde o serviço militar nunca mais tinha feito aquilo e nesta altura a minha idade e a falta de exercícios nesta área muscular dos braços era o bastante para ter alguma apreensão, a Otília passou primeiro, não sem antes ir um pouco a arrojar antes de saltar para o Rio, rapidamente ajudada foi colocada de novo em pé e lá saltou como deve ser e o Slida a levou para o outro lado da margem. De seguida fui eu, como levava os bastões e tinha de segurar nas correias de segurança tinha de fazer isto com cuidado, saltei e quando fiquei suspenso até parecia que o corpo se ia separar dos braços e doeu mas depressa recuperei, ali um pouco mais à frente estava o abastecimento dos 30 kms mas para lá chegar era preciso vencer agora um traçado que metia muito rochedo e o caudal muito forte do Rio que corria ali a nossos pés, as cascatas sucediam-se numa beleza extraordinária lembrando e superando do muito que já vi nos imenso Trails em que tenho participado. O cuidado agora tinha que ser redobrado, a Otília segue ainda na minha frente salta de uma rocha para a outra com uma extensão de +- 1 metro passando um forte caudal de água pelo meio e passa sem qualquer problema, quando lá chego alguns segundos depois tento fazer o mesmo, que raio já tantos tinham passado por lá, mas não consegui, mal coloco o pé no lado de lá desiquilibro-me para trás e caí no Rio, fico debaixo de água apenas com o braço esquerdo de fora para salvar o telemóvel que levava, bati com o braço numa pedra sem consequências mas doeu, estive ali um pouco para perceber o que aconteceu e não foi fácil sair de lá porque as rochas no fundo eram escorregadias e a cada movimento voltava a cair, os bastões já boiavam mas não saíram dali apesar da forte corrente, ninguém gosta de cair mas devo confessar que depoi de lá estar dentro da água, que estava fria, até me soube muito bem pois arrefeceu-me o corpo e principalmente os gémeos que já vinham a tremer que nem varas verdes.
50 metros depois estava o abastecimento, pego num copo e fui a uma nascente beber da água que escorria da serra, comi ums bananas e marmelada e atesto o kamalbeck, depois tirei o ar para não ir a chocalhar, o telemóvel cai e coloco-o em cima da mesa, depois vou embora com a Otília, o António e o Jorge ficam ainda no Abastecimento, mais à frente aí a 500 metros lembro-me que o telemóvel ficou lá e decido continuar pois com um pouco de sorte ainda o vou recuperar quando chegar à meta.
O caminho era agora feita na margem esquerda do Rio subindo e descendo enseadas, caminhando sobre grandes rochas e pedregulhos mas sempre com grande segurança garantida pela organização ao colocarem cordas nas partes mais difíceis e perigosas, aqui lembrei-me da Freita onde o risco é muito superior e onde temos de nos desenvencilhar sozinhos e sem qualquer tipo de ajuda.
Após abandonar este local muito bonito e espectacular, depois de ter recuperado o meu telemóvel que o António troxe de volta, e já na companhia também do Jorge iniciámos a subida para a penúltima montanha, dou conta que a água do meu Kamalbeck vai a chocalhar muito e faz barulho, páro e digo-lhes para avançarem, depois tiro o ar e coloco-o de novo ás costas, pouco depois verifico que estava na mesma então volto a parar e vejo então que aquilo estava mal apertado, faço tudo de novo e abalo serra acima a ver se ainda os apanho, tinha perdido mais de 5 minutos e ainda por cima a serra era muito a pique e nunca mais os vejo. Chego ao cimo da serra e caminho agora mais preocupado em chegar ao Rio Cávado, a pressão começa a aumentar e fico sem folga para descansar um pouco e tenho de correr muito para recuperar algum tempo, o problema é que as forças já eram poucas, começo a descer de novo sem saber que já me tinha perdido, devia ter atalhado um pouco antes à esquerda mas não vi a indicação, na minha frente continuavam a aparecer fitas mas não eram as dos Amigos da Montanha mas sim duma prova de motos que se estava a realizar no mesmo cenário, ainda por cima eram da mesma cor, continuo no engano e vou dar ao caminho que percorrera na 1ª parte do percurso, corria agora o risco de regressar ao local de partida pelo caminho que já tinha percorrido, encontro um entroncamento com fitas para a direita e para a esquerda tendo eu optado por ir pela esquerda voltando a subir a serra até que vejo lá mais à frente outros atletas a descer que vinham muito atrás de mim, é aqui que me apercebo que algo não estava bem, digo-lhes que me tinha enganado e dizem-me para seguir com eles, como não gosto de fazer as coisas mal voltei para trás aí uns duzentos metros e fui confirmar as fitas que estava a seguir, não eram as nossas e retornei ao local certo onde tinham passado aqueles 3 amigos. Tinha feito perto de 1,5km a mais e fiquei revoltado comigo mesmo, o tempo esgotava-se...
Na aproximação aos 40kms novo engano e ainda por cima pelo mesmo motivo, atravesso uma estrada de alcatrão localizada perto de uma povoação onde estão 2 elementos da organização, passo com segurança e apanho a rua principal, a cerca de 500 +- devia cortar à esquerda conforme indicação de uma seta instalada numa rede e até estava bem visível, mas como eu ia encostado na berma direita da estrada não a vi e continuei a acompanhar as fitas que surgiam à minha frente do lado direito e que eram de novo das motos, 100 metros mais à frente volto à direita e apanho a estrada de alcatrão e vou dar de novo com os 2 elementos que encontrara pouco antes, agora sim explicaram onde devia cortar mas que devia ir encostado à esquerda para ver melhor as marcações. Assim fiz e pouco depois encontrei o caminho certo, seguramente foi mais 1km que andei ali perdido sem saber, pouco depois chego ao abastecimento dos 40 kms, abatido mas com vontade de tudo fazer para chegar a tempo antes de fecharem a travessia do rio.
Neste abastecimento encontro 2 amigos que ainda lá estão, um deles diz-me que eu já o tinha passado duas vezes no percurso, então explico o que se passou e pouco depois parto de novo mas agora com mais preocupação, o meu relógio já dava mais 3kms do que as marcações que ia encontrando da organização, isto é no meu relógio faltavam 8 kms para chegar ao rio e na marcação de kms da organização faltavam 11kms, isto estava a ficar bonito, apenas tinha 1,12h para chegar e sabia já que não ia conseguir. Mas não desisti, consegui apanhar um dos atletas que estava no abastecimento anterior e sigo com ele, pouco depois chega o outro e entreajudamos os 3 para tentar chegar, sigo na frente dos 3 até que avistamos o rio Cávado, um deles dá um grito de júbilo e corre que nem um doido e leva o outro atrás, mais uma vez fico só porque não consigo correr mais, fico com a esperança de dizerem quando chegarem que estou por perto pois o tempo imposto pela organização já estava perto de ter expirado, levaria ainda 40 minutos a chegar desde que avistámos o rio e até chegar ao local de travessia, isto é 30 minutos depois da hora estabelecida e de compromisso com quem nos estava a levar para o lado de lá. A 500 metros do local dos kayakes passam mais 2 atletas por mim, também iam em grandes dificuldades, vão correndo aproveitando agora uma descida, eu sem saber como corro atrás deles na esperança de ainda haver epótese de passar e digo-lhes para esperarem por mim se ainda conseguirem passar, pouco depois avisto o local de embarque e o desalento apodera-se de mim, os kayakes já estão fora de água e amontoados prontos para serem levados dali, os dois amigos que tinham acabado de chegar tinham sido informados que já não podiam passar e aparentemente aceitaram bem a ordem dada, estavam agora na parte do abastecimento a alimentarem-se, chego e sou informado do mesmo, vejo a moto d´água ainda dentro de água e peço ao responsável da organização para nos deixar passar falando-lhe ao coração de quem emocionado tinha feito 51kms para ali chegar e ver desmorenar de repente tanto sacrifíco para o conseguir. Não tenho palavras para agradecer mas quase de noite aqueles nobres rapazes colocaram-nos no lado de lá apesar da pressão que sofriam por um dos elementos da organização que estava do lado de lá e que se mostrava mais incensível (e de maus modos) a este gesto. A partir dali na outra margem a calma voltou, agora era só chegar, tinha ainda 6 kms para percorrer mas as forças tinham acabado, andava o mais depressa que podia, a noite tinha chegado e o caminho agora era muito irregular, ora nas margens do rio ora atravessando as hortas ou ainda subindo e descendo pequenas inclinações, mas agora não tinha pressa, sabia que vinham ainda 2 amigos mais atrás, nada sabia do Carlos Coelho, soube depois que vinha ali a 5 minutos de mim e não conseguiu passar passar o rio, o mesmo tendo acontecido à Analice, fiquei muito triste por eles.
Já na última aproximação ao rio perto da chegada nova queda mas sem qualquer consequência, pouco depois subo a escadaria de acesso à ponte para atravessar de novo o rio Cávado para o lado de lá, subo a estrada empedrada ao longo do Castelo até ao centro da Cidade, aqui encontro a rua principal muito bonita e com algum movimento de pessoas, eu corria agora, ainda com o frontal aceso mas para quem por ali andava era como se nada se passase fora do normal da sua vivência, pouco depois avisto o local que tanta ansiara desde a partida ao fim de 10,30h, mas a desilusão depressa se apoderou de mim (também não poderia esperar outra coisa) todo o teatro estava quase desmontado, estava lá um pórtico, o controlo de chegada, uma mesa já um pouco pobre de abastecimento e um aplauso bem forte de quem ainda por ali estava à nossa espera. Pouco depois chegam os 2 últimos amigos encerrando-se assim a participação de atletas chegados à meta, tinha sido o 162º num total de 164 finalistas.
Fui o último a chegar dos atletas com mais de 60 anos, mesmo assim ainda fiquei no 3º lugar do pódio do meu escalão e gostaria que o meu troféu chegasse até mim já que no local nada soube e por isso não o solicitei.
A distância exacta, incluíndo os enganos foi de 59,240kms com o tempo de 10,31,07h.
Era para colocar aqui algumas considerações sobre a prova mas não o faço, até porque considero que tudo o que me correu mal é da minha inteira responsabilidade, devo aliás agradecer tudo o que fizeram para que tudo nos corresse o melhor possível e com total segurança, estendo os meus agradecimentos a todos os que estiveram no terreno durante tantas horas e num dia em que a temperatura não era das melhores. Parabéns à organização por esta extraordinária competição e pelos apoios que nos foram concedidos, antes e depois da prova. Espero regressar.
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8 comentários:
Mas uma extraordinária aventura do "jovem" Joaquim Adelino com um relato tão emocionante que até nos sentimos dentro da prova!
PARABÉNS!
Abraço.
(vou dar destaque no UK)
Só tenho duas palavras: Emocionante! e Parabéns!
Quanto ao relato em si reitero aquilo que já disse anteriormente: temos escritor. Estes textos mereciam, em minha opinião, ficar para a posterioridade. Duvido que haja alguém que alguma vez tenha feito desporto (e se calhar nem é preciso isso) que não sinta a emoção e a vontade de saber o resultado, com esta fluidez da narrativa. Um grande abraço
Olá Joaquim.
Um relato muito bonito e apaixonante.
Como diz o Jorge, com o seu relato senti-me transportada para a prova. Muito emocionante.
Parabéns pela prova e pelo relato.
Um beijinho e boas corridas.
Parabéns Joaquim, vejo que foi muito mais do que um trail, será já mais uma corrida de aventura, força neesas aventuras, eu e nos tempos mais próximos fico-me apenas pela corrida.
Abraço,
António Almeida
O relato na primeira pessoa de uma completa corrida de Trail. Quem por lá andou sabe as dificuldades que passou e valorizar quem passou por tamanha aventura. Parabéns companheiro.
Parabéns Joaquim, pela prova e pelo texto, emocionante, que nos prende até ao fim. Abraço e boas corridas
Oh pai!! Houve partes em que me ri, até mesmo das que te enganaste e da do telemovel, está emocionante, só tu! Bem haja ao pessoal das Motas de água pelo gesto!!
Parabéns Beijo
Lá voltaste tu tantos anos depois aos teus tempos de Pára e lá voltaste a pendurar-te num 'slide'.
:)
Uma história de querer e vontade em terminar uma dura prova e mesmo com o sisudo do da organização que esbracejava pelo facto de os rapazes vos colocarem do outro lado do rio não te impediu de chegar ao fim.
Tenho que te dar um valor enorme às tuas proezas pois não revejo ver-me a fazer provas assim.
Parabéns!
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