quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Ultra Trail dos Abutres, 31/01/2015

Parte da minha "Equipa" que devia partir comigo para Miranda do Corvo não chega a sair de casa, quase 3 meses antes planeáramos a deslocação, éramos 3, e à ultima da hora as lesões afastaram-nos da prova dos Abutres, parti só e repeti a odisseia sozinho tal como fizera em 2011 com a realização da 1ª edição, então com 32 kms apenas de extensão. Falar da 5ª edição desta prova realizada no passado dia 31 de Janeiro e compará-la à 1ª edição de então é como ir à fonte com um cântaro de 5L e voltar lá agora e carregar com um de 30L. Então fizera 5,40h para perfazer aqueles 32 kms, agora necessitei de 7,05h para chegar aos 30 kms deixando por fazer (por chegar fora do controlo) mais 20kms. Claro que mudou muita coisa, o nº de kms, o nível de Organização, o nº de atletas, o grau de dificuldade e também os 5 anos a mais que já pesam em cima desta carcaça, já muito usada, para não dizer outra coisa. E este ciclo vai continuar, comigo ou sem mim, a paixão da aventura e do risco continua a "atormentar-me", não resisto ao acompanhar fisicamente da evolução desenfreada do que é actualmente as provas de trilhos em montanha, o que era inicialmente conhecido por caminhos e trilhos simpaticamente idealizados para todos desfrutarem da Natureza transformou-se nos tempos actuais numa agressividade sem precedentes, com contornos por vezes sádicos e sem avaliação de riscos ou pelo menos descurando-os de forma grosseira roçando a irresponsabilidade.
Esta 5ª edição da Ultra dos Abutres tinha, e teve tudo para ficar gravada na história recente do Trail em Portugal, a própria organização da prova evoluiu espectacularmente ao longo de todas as edições ao ponto de se esmerarem para perto da perfeição nesta última edição. A perfeição de que falo nada tem a ver com o que se passou em prova, essa nada nem ninguém conseguiria assegurar devido ás péssimas condições climatéricas no terreno, mas na perfeição como responderam aos imponderáveis surgidos na noite/véspera da prova e a resposta dada para assegurar a sua realização e permitir ás centenas de atletas que ali estavam ansiosamente a aguardar pela ordem de partida. Creio que foi um risco enorme e corajoso permitir o início desta prova, como creio que terá sido um alívio enorme para a organização quando o último atleta encerrou com o último passo mais esta edição da prova. Foi notório no breifing final antes do início da prova o nervosismo do Spyker ao dar os últimos conselhos sobre os cuidados a ter na Serra, profundo conhecedor daquela Serra sabia que ali na sua frente estava gente ansiosa e também uma
boa parte deles inconsciente para o que ia encontrar, os riscos eram enormes mas mesmo assim tiveram a coragem de não defraudar a vontade daquela gente. Ainda assim deixo um reparo, porque é que não foi eliminado, tal como o fora a Ribeira de Espinho, aquela descida infernal dos 25 para os 30 kms? Num dia normal sem temporal aquilo é de facto espectacular mas naquelas condições torna-se um perigo iminente a cada passo que se dá, eu e um amigo que ali seguia comigo perdemos o conto ás quedas que demos, nem imagino o que se terá passado com os outros, fora dos trilhos nada sei da Serra mas creio que era possível ali qualquer trilho ou estradão alternativo até chegar ao posto de controlo dos 30 kms e assim evitar a eliminação de tanta gente.
A perfeição está também, pensada ou não e mantida em segredo, até na forma como decidiram o atraso em duas horas da prova e a inflexibilidade de conceder mais tempo no 1º posto de controlo a quem lá chegasse para além das 5,30h, pessoalmente nem sequer me senti frustrado porque não fui capaz de lá chegar antes das 7,05h de prova mas respeito a frustração daqueles que
por segundos ou poucos minutos se viram barrados, quero crer por isso que esta experiência vivida este ano também será benéfica para a própria organização que por certo retirou muitos ensinamentos para as edições futuras, a redistribuição mais ajustada dos tempos de passagem tendo em conta o grau de dificuldade a percorrer e nº de kms e ao mesmo tempo percursos alternativos para rapidamente responder aos imponderáveis agora sucedidos.
Pessoalmente, apesar de todos este imponderáveis gostei da prova, há 2 anos aconteceu uma situação quase semelhante de mau tempo mas tive a pouca sorte de aos 2.5kms ter sofrido uma micro rotura num dos gémeos e a desistência, gosto de correr à chuva e a lama não me assusta, mas desta vez aquilo também foi de mais, fiquei descalço logo no início quando começou o lamaçal, os que vinham atrás ainda ajudaram a esconder mais os ténis, enterrado até ao joelho fui descalço até encontrar onde pudesse lavar-me e recomeçar a corrida, logo de seguida falho um salto e caio num pequeno ribeiro sem consequências. 
O 1º abastecimento este ano estava perto dos 15 kms, nesta ascensão à 1ª grande subida aos 900 metros contei com as companhias de amigos, da Isadora e companheiro, da Célia Azenha, José Carlos Melo, João Meixedo e foram muito preciosos, a muita água que escorria pelos trilhos, a lama e as rochas molhadas e escorregadias eram um perigo assustador. Mais acima, depois de saltar riachos e poças de água e lama chegámos ao abastecimento dos 24 kms e encontrei os primeiro desistentes, ali o frio era imenso a juntar ao granizo que volta e meia estava a cair, os flocos de neve também caíam lentamente originando sem surpresas o início de uma fase em que as mãos deixaram de ser sentidas e as dores se tornavam insuportáveis, atestei o camalbeck e comi pouco e abalei com o Meixedo e mais 2 amigos, continuámos a subir e o frio e a insensibilidade dos dedos a aumentar, as dores acompanhavam mas nada podia fazer pois o corpo não gerava calor para ajudar a ultrapassar isto, correr não dava e tinha a esperança que quando chegasse ao ponto mais alto se pudesse começar a correr. Iniciamos a descida aos 25 kms com 5,30h de
prova mas correr era quase impossível, tínhamos já a certeza que não passaríamos o controlo das 5,30h aos 30 kms, descer aqueles 5 kms foi um teste à resistência, equilíbrio, força, reacção positiva ás quedas, ao sacrifício e sangue frio, felizmente tive sempre companhia na descida o que permitiu acumular mais confiança e entreajuda nos obstáculos a enfrentar, apesar de ser a descer aquilo foi uma eternidade, 1,35h para percorrer pouco mais de 4,5kms com o "castigo" de na parte final descer a um poço com perto de 200 metros tendo como ajuda uma corda, que dispensei. Mais 300 metros e a meta de controlo dos 30 kms, já lá não estava, uns pinos mantinham-se lá alinhados para dizer que era ali que devia ter chegado antes das 5.30h se queria prosseguir em prova! Como se eu fosse um intruso pedem-me sem cerimónias que retire o chip, coisa que tenho dificuldade em fazer devido à dormência que ainda mantinha nas mãos. Um pouco mais de simpatia também se impunha ali na chegada dos atletas e é de carinho que todos precisavam após provação tão elevada, mas pronto!!!
Terminava ali sem frustração a minha participação nesta 5ª edição dos Abutres, a primeira prova em que fui barrado por excesso de tempo, não sei se voltarei, o tempo máximo de limite no final está acessível mas os tempos intermédios esmagam-me qualquer tentativa, aguardemos.
Para a Organização e todos os que estiveram envolvidos, bombeiros e voluntários civis vai o meu apreço e um abraço.

7 comentários:

Alexandre Duarte disse...

Que relato. Que provação. Interrogamo-nos se assim vale a pena não é Joaquim? Com o aumento exponencial das dificuldades que são colocadas em algumas provas (há até casos em que as organizações indicam com orgulho a percentagem de desistências, como se isso concedesse qualquer tipo de estatuto à prova), temos que deitar mão à necessidade de escolhermos com maior cuidado as opções, que felizmente são muitas. A continuar neste ritmo, temo que só uma desgraça venha a repor alguma serenidade no estado das coisas. Boa recuperação. Abraço

joaquim adelino disse...

De acordo Alexandre, admito o aumento das dificuldades mas que seja para mostrar o que a Serra tenha de mais bonito, por masoquismo não e por sadismo ainda menos, espero que comece a existir algum bom senso, estender em quilometragem sim mas aumentar a perigosidade não, chega a uma determinada altura que as nossas forças não resistem mais ao combate e aí dá-se o acidente, espero que parem um dia para pensar e antes que seja tarde demais.

JoaoLima disse...

Muitos parabéns Adelino pela prova, pela luta contra o inevitável, e por toda a coragem que é um exemplo para todos.

Um grande abraço

Isa disse...

Amigo Adelino, é sempre um prazer revê-lo.
Para quem, como nós, nunca tinha ido aos Abutres, foi uma estreia que ficou para a história. As condições do terreno e as condições meteorológicas foram extremas e assustaram um pouco. A organização teve os seus pontos fracos, mas tomou difíceis decisões que eram necessárias para a segurança de todos. E a segurança tem sempre que vir em primeiro lugar.

Até uma próxima!
Beijinhos

Carlos Cardoso disse...

Mais uma grande crónica de uma prova de enorme superação. Se acabar os Abutres já é muito difícil, nas condições de sábado passado ainda muito mais. Tenho um grande respeito por todos que colocaram os pés a caminho, acabassem ou não a prova. Os meus parabéns pela sua participação.
Um abraço

Jorge Branco disse...

Mais um excelente relato e uma grande prestação pois foi até onde lhe era possível ir.
Penso que há provas de trail para todos os gostos e se há "clientes" para as mais radicais eu não vejo problema nisso. Cada um é livre de se meter onde quer!
Agora quanto mais perigosidade tem um prova mais meios de segurança tem de ter. Não se pode juntar perigo sem adicionar um forte componente de segurança. Mas pelo que sei essa prova tem mantido a segurança ao mais alto nível. Forte abraço campeão.

Sérgio Pontes disse...

Deve ter sido uma provação incrível!

Um abraço