quinta-feira, 22 de maio de 2014

Ultra Trail de S. Mamede

É verdade, voltei a S. Mamede, Portalegre com o intuito de terminar aquilo que iniciei em 2013 e não fui capaz de terminar, o Ultra Trail de 100 kms de distância. Pese embora o facto de em 2012 ter completado a prova ficaria sempre um amargo na memória se isto não seria obra do acaso ou fruto de um qualquer voluntarismo excessivo que permitira chegar nesse ano à meta. Por via das dúvidas decidira voltar a 3ª vez consecutiva decidido a completar a prova e deste modo terminar um ciclo a que me propus durante estes 3 últimos anos, totalizando quase 300 kms em 53 horas com uma desistência pelo meio.
Desta vez estava ciente das dificuldades que iria ter pela frente, não tanto como pensava, mas num circuito como aquele é de esperar sempre o pior, as alterações introduzidas, pelos menos 5, vieram causar imensos problemas a muita gente pelo grau de dificuldade encontrado, principalmente aos menos experientes e estreantes nesta distância. Para os repetentes, como é o meu caso, estas alterações são sempre bem vindas, mesmo que mais duras, porque se assim não fosse todo o percurso seria previsível e consequentemente muito monótono. Ainda assim...
A noite estava espectacular para a prova, fresca e pouco vento, o Luar estava meio envergonhado não ajudando em nada a encontrar o local onde pôr os pés, à partida perto de 700 atletas ou participantes como era o meu caso. Em ambiente de grande festa partimos à Meia-noite, eu tinha a noção que só voltaria ali à meia noite do dia seguinte, iriam ser muitas horas a correr e a andar. não dormira qualquer hora neste dia e o corpo mesmo antes de começar já dava sinais de alguma moleza. Tudo se esquece quando a organização nos manda embora e ir à nossa vida, a concentração está agora no máximo, já que partiram todos sonham em chegar, a esmagadora maioria leva como único objectivo fazer a aventura da sua vida e chegar em condições de se orgulhar dos seus feitos e superação e ainda poder depois contar a sua odisseia.
Logo no início da prova a organização tentou arranjar uma alteração ao percurso de anos anteriores para permitir um fluxo maior aos atletas na fase inicial, penso que foi um objectivo falhado já que as filas ficaram enormes e andar era muito penoso com tanto tempo de espera para se dar um passo, mais à frente nova dificuldade no rio pelas mesmas razões. Logo que retomámos o caminho normal não existiram mais problemas de entupimento de atletas, sendo atingido o 1º e 2º abastecimento sem mais constrangimentos. Aqui em Alegrete (17kms)começam os meus problemas de barriga, aproveitei as instalações ali existentes e tentei comer alguma coisa, o estômago começava também a ter a sua autonomia e a dizer que tivesse cuidado com o que metia lá para dentro, empurrei a banana, uns pedaços de bolo regional e marmelada e parti à conquista do alto da Serra de S. Mamede, eram agora 13 kms e quase sempre a subir, mas a 2ª alteração ao
percurso estava ali em plena ascensão, do meio da serra para cima aquilo tornou-se brutal, vi um amigo em grandes dificuldades que seguia à minha frente, o filho acompanhava-o, no alto este informa-me que o pai desistira após a 1ª leva de dificuldade, à 2ª já não estava em condições e ficou ali. Subi sempre motivado, os bastões davam-me bastante energia através dos braços e ia sempre ultrapassando outros participantes mas era notório que o cansaço se ia acumulando, quando se chega ao alto e logo a seguir encontro o 3º abastecimento é um grande alívio, era uma confusão enorme, as tendas tinham muita gente, já por ali havia muitos desistentes que ocupavam quase todos os espaços, procurei uma cadeira para me sentar um pouco e não havia, os meus pés já ardiam e necessitava de me descalçar e descansar um pouco, um atleta adormece ali com um café entre mãos, já não o deixam seguir, um colega da minha equipa estava ali em grandes dificuldades
deitado na tenda mas eu não sabia, acabaria por desistir, o Carlos Coelho chega entretanto e informa-me que fica por ali, acarinhei-o com nome que não gostou, fui insensível e magoei-o, peço desculpa pá!!! Mesmo em dificuldades vou à mesa e tento comer um pedaço de banana, não consigo, o mesmo acontece com os outros alimentos e começo a ficar preocupado pois faltavam ainda 70 kms e o organismo não iria resistir. Atesto de água e parto, o dia estava a amanhecer e pouco depois desligo o frontal, dali até ao km 40 é quase sempre a descer por um novo percurso idealizado até ao km 50, aproveito para correr um pouco, o sol começa a castigar o vento era quase nulo, com o estômago sem nada dentro a desidratação instala-se, ingerir a água só aos pequenos goles e a boca de 5 em 5 minutos secava, esta foi uma constante ao longo dos kms que faltavam até à meta, os desvios "técnicos" à mata eram mais frequentes, contei 7, mas pouco efeito fazia. Aos 40 kms (PAC4) sento-me um pouco mas nada ingeri de alimentos, apenas água e pouco depois parti rumo a nova escalada montanhosa, o alto da montanha estava a 970 metros de altitude, vários kms sempre a subir, no alto percorremos o planalto durante alguns momentos em território espanhol, até pensei que a ida
a Espanha seria por algum motivo de cortesia por sermos visinhos, mas não, nem vivalma. Tem razão de ser o ditado "de Espanha nem bons ventos nem bons casamentos" mas que a vista ali do alto para o lado espanhol era bonito lá isso era. O sol ia apertando de intensidade e raramente se apanhava uma sombra para protecção, a descida até ao PAC5) permitiu que corresse mais um pouco mas os pés continuavam o seu processo de degradação. Neste abastecimento nada de novo, mudo a água por estar muito quente e sigo para Marvão, estava ali por perto mas as voltinhas que tínhamos de dar totalizavam mais 11 kms. Corria agora sozinho, aliás nunca tive um sólido companheiro durante toda a prova, apenas de ocasião, e foi assim que iniciei a subida a Marvão debaixo já de um sol tórrido, a calçada inicial vai aos poucos dando lugar a uma inclinação brutal a caminho da entrada no Castelo, quase no topo existe uma fonte de água de nascente, parei um bom bocado e molhei tudo o que era sítio, bebi e abasteci apesar de lá dizer que a água não era controlada, (acho estranho, mas pronto!) Até entrar na porta do ladrão foi um autêntico suplício com aquela subida final a dar cabo do resto. Chego ao PAC6 com 12 h e pouco mas pouco
convicto que iria conseguir chegar à meta dentro de um tempo que considerara razoável, mas isso agora pouco importava, depois de chegar vou directamente buscar a muda de roupa que lá tinha e desfaço-me de tudo o que levava, deito-me no chão frio da sala em cima de uma toalha a recuperar as forças que perdera naquela subida final, estava também muito frágil por  não conseguir alimentar-me, tinha comigo umas barras, umas passas de uva, uns amendoins com açúcar e amêndoas de cajú com sal, nada disto conseguia comer, fui recuperando aos poucos na posição de deitado, queria dormir mas não podia e questionei-me bastante se não ficaria já ali, ao fim de uma hora visto o resto do equipamento, os pés agora já pouco doem com a muda dos ténis, largo tudo o que pode fazer peso e desço à procura de comer qualquer coisa. Havia sopa e comi duas tigelas cheias que me caíram muito bem neste estômago já tão depauperado, preparo tudo e parto mas ainda
queria beber mais um copo de água e bebi, valia mais que tivesse batido com a cabeça num toro qualquer, mal a água entrou em contacto com a sopa esta saíu logo em repelão boca fora, inconscientemente fizera asneira e a única comida que conseguira ingerir até ali estava agora no bidon, sentei-me de novo para recuperar da ansiedade e começo a sentir-me muito bem, limpara o estômago e agora estava em condições de comer mais alguma coisa, fui de novo à sopa e esta aguentou-se lá mas tive de abster-me de beber água durante algum tempo.A partir de Marvão acabara-se para mim a corrida, saíra de lá com 13,45h de prova, tinha agora 10 horas para fazer 40 kms até chegar à meta, na descida de Marvão pela estrada medieval sentia a parte muscular superior a ficar fragilizada e não quis arriscar, era possível mesmo num andamento mais rápido fazer 5 kms por cada hora ficando ainda algum tempo para curtas paragens em locais sagrados para mim, ribeiros,
charcos corrente e nascentes. Depois de passar pelo PAC7 (70kms) onde outro colega da minha equipa tinha posto fim à sua odisseia por problemas nos pés, segui para a etapa seguinte em Castelo de Vide, o sol continuava a não dar tréguas, a subida em pedra torturava ainda mais os pés, onde havia animais a pastar sabia que havia pequenos ribeiros de água de nascente, parava, refrescava e bebia, agora só ansiava que o sol descesse um pouco, até à Capela da Penha somos protegidos pelas sombras das árvores tornando mais fácil a progressão até lá. Chegara finalmente ao ponto mais distante da meta, 80 kms já estavam para trás e estava mais certo de ir conseguir chegar apesar das dores nos pés serem muitas e o estômago continuar com graves problema, neste PAC8 apenas bebo coca-cola, experimento e o estômago aceita, bebo mais 2 copos daquilo e fico à espera de alguma reacção negativa, mas não, aguentou-se. Depois de uns 15m de descanso parto para a etapa mais longa de 13 kms até ao próximo posto de controlo. Tinha os meus filhos em contacto comigo que por sua vez iam acompanhando a prova via Internet, tenho de lhes agradecer porque foi uma ajuda importante, assim soube sempre o que tinha pela frente, o Rui Pacheco , também dos A.V.Silêncio depois de conseguir o seu 4º lugar na corrida também me liga
Gentilmente oferecido pelo Rui Pacheco ( O seu 4º lugar)
e informa-me que aquele trajecto final também tinha sido alterado, mas quando lá passei vi que esta alteração veio de facto valorizar ainda mais a prova tirando-a da várzea e das estradas de alcatrão. Em contrapartida ficou mais difícil mas com muitas linhas de água tão do meu agrado. A noite foi apanhar-me perto do km 90, paro e sento-me para tirar o frontal e colocá-lo, vêm ali perto alguns atletas que passam por mim mas um deles pára a olhar para mim, pergunto se era o vassoura e ele responde que sim, levei as mãos à cabeça e sinto que acabara o meu sossego. Rapidamente apanhamos os outros que seguiam à nossa frente, com uma passada forte sigo para a frente descendo agora para o Convento onde estava instalado o PAC9, fora aqui que eu desistira o ano passado mas este ano estava determinado em prosseguir mas sabia que ainda ia encontrar um osso duro de roer com a passagem na Ermida cuja escadaria possui mais de 270 degraus. A Coca-coça
Rui Pacheco
continuou a ser a única ingestão que o organismo consentia, quer no Convento quer na Ermida. Na Ermida ainda alcancei mais atletas bem como no caminho até à meta. 00,40h estava a entrar na pista, muito debilitado ensaiei uma corrida ao iniciar a volta, mas pouco depois estava de novo a andar, o José Sousa veio a correr ter comigo e a meu lado incentivou-me a correr até à meta e assim fiz. Estava concluída, vou até ao sintético e deito-me, seria melhor que aquilo fosse relva mas depressa me levanto, o José o Miguel e a Yolanda levam-me rapidamente dali para um banho retemperador, depois descansar em solo duro no Pavilhão escolar, comi uma maçã e de imediato para dentro saco, até de madrugada. Nada tenho a reclamar, as marcações estavam impecáveis e pequenos enganos verificados são normais, gente muito simpática que encontrando, parabéns pelo sucesso na informação que disponibilizaram em cima do acontecimento permitindo que a família mais chegada estivesse sempre perto de nós. A toda a organização um muito obrigada. 

9 comentários:

Alexandre Duarte disse...

Parabéns Joaquim. Pela prestação em São Mamede e por este relato que me transportou de novo para aquele sábado, de tantas emoções.
É um relato que espelha bem a tua força, especialmente aquela que te vem da vontade e do querer.
Como de costume foi um prazer fazer o início ao teu lado.
Fico muito contente por teres conseguido atingir o objectivo que tinhas previamente traçado para esta participação.
PARABÉNS!
Abraço

PS. Gostaria de ficar com uma cópia da foto contigo e com o Luís. Posso?

joaquim adelino disse...

Obrigado Alexandre pelas palavras simpáticas, também eu ao reler o que escrevi, com muitos erros, me sinto transportado para a prova de sonho sempre que o faço, creio que é a história vivida um pouco por todos nós. Parabéns pela excelente prova que realizaste e pela companhia até à passagem do Rio. Claro que podes copiar a foto, se não conseguires envia-me mensagem em privado. Abraço

Maria Sem Frio Nem Casa disse...

Parabéns pela conquista! Fico muito contente por si Adelino! Agora...boa recuperação!

Isa disse...

O Joaquim é um exemplo para todos nós.
Parabéns por ter concluído a prova e ter conseguido ultrapassar todas as adversidades!
Fui apenas aos 42 km mas daqui a 2 anos quero ir aos 100 km. Deve ser uma experiência incrível e inesquecível.

Um beijinho

Jorge Branco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jorge Branco disse...

Esgotei completamente as palavras para dizer alguma coisa sobre estes relatos extraordinários e a fibra deste grande campeão!
Só me posso curvar, respeitosamente, perante um grande senhor do trail e um homem fraterno e solidário como poucos.
Forte abraço CAMARADA Joaquim Adelino.

Carlos Cardoso disse...

Muitos parabéns Joaquim Adelino...não me canso de dizer que o senhor é um grande exemplo para mim. E que dizer deste relato...fantástico, consigo sentir partes da sua prova...tantas dificuldades ultrapassadas só dão ainda mais valor ao feito que conseguio.
Desejos de boa recuperação e até um dia destes, algures numa serra por aí.
Grande abraço

Sérgio Pontes disse...

muitos parabéns!

Sílvio Horta disse...

Parabéns! Grande vitória ter chegado ao fim depois do ano passado ter desistido quase no final!