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Marvão. o trio aos 60 kms. |
Apesar da minha desistência no Ultra Trail de S. Mamede aos 90 kms por estranho que pareça (para mim) não fiquei com qualquer trauma ou complexo pelo sucedido, fui aos limites e na última subida (88 kms) já dava 2 passos para a frente e um para trás e o corpo recusava-se em se manter direito, os meus 2 queridos companheiros de "viagem" ali iam à minha frente pachorrentamente a aguardar que os acompanhasse naquela que seria a derradeira tentativa de superar o suplício que estava a atravessar adiando o que seria o inevitável, a desistência.
Mas como foi possível chegar a esta situação? Podia ser evitada? O que é que contribuiu para se iniciar um processo irreversível logo à passagem do km 35? Perguntas que podem ter algumas respostas na apreciação e reflexão que cada um deve fazer a si próprio, mesmo que tudo corresse bem é indispensável que se faça porque nunca há duas provas iguais, mesmo que o trajeto de percurso seja o mesmo ou parecido.
Creio que cometi demasiados erros, não na prévia preparação da prova mas sim já no local e os cuidados a ter para a enfrentar porque para enfrentar uma prova de 100 kms não basta uma boa preparação física e mental, é preciso também não esquecer todos os outros elementos essenciais que parecendo menores têm uma extrema
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Meia Noite, hora de partida |
importância, a começar pela concentração, isto é, por vezes deixamo-nos levar pelos simpáticos comentários de que já somos dos duros, que temos muita experiência, etç, e esquecemos que cada prova tem de merecer o nosso maior respeito, deste modo tenho a sensação que desta vez descurei este pormenor, pese embora o facto de este estado de espírito positivo e descontraído enquanto se aguarda a partida acabe por contagiar os outros que me rodeiam, o que é positivo. A mente e o físico estão bem, penso eu, e o resto? Os ténis que levei eram inapropriados para uma prova com aquela dureza, são de trail é certo mas é para andar em cima de manteiga e não em cima de pedregulhos, mesmo os que tinha em Marvão para uma muda pouco ajudaram e eram equivalentes, por norma em todas as provas procuro minimizar os efeitos da fricção, quer nas virilhas quer nos pés, e o que é que eu fiz? nada e as consequências disso não se fizeram
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quase duas mãos cheias de amigos |
esperar em pouco tempo (como à frente direi), os calções em provas deste tipo devem ser confortáveis, mais um erro que cometi, levei calção licra até ao joelho e cueca por baixo com resultados dolorosos passado pouco tempo, equipamento muito deficiente face ao demasiado frio que estava e que se mostrou desastroso no alto da Serra com temperaturas negativas, levando-me quase à situação de hipotermia. Tudo isto contribui negativamente para se impedir de alcançar o objetivo da vitória que é chegar quando se parte. E eu não cheguei, não fui capaz, por mais força mental que tivesse o físico desta vez levou a melhor e derrotou-me.
Era Meia Noite de Sexta para Sábado quando partimos, tinha 2 amigos que iam fazer a prova comigo, O Luís Miguel e a estreante na distância Susana Brás, estava fresco e era o ideal para
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momento de diversão |
correr, a noite estava escura e as nuvens ameaçavam, o ambiente era de ansiedade mas ao mesmo tempo alegre, a nossa estreante estava agora mais descontraída depois de ter passado alguns momentos a sós e em silêncio como forma de se auto motivar perante tão grandioso desafio. Frontais acesos e abalamos, a SIC estava por ali e eu nem me apercebi, como não é hábito fiquei surpreso quando mais tarde vi as imagens que publicaram, fica o meu louvor pela iniciativa que tiveram em estar presente neste grandioso evento desportivo compensando de certa forma o esforço tremendo que as gentes de Portalegre fizeram para pôr de pé esta prova.
Os primeiros kms de prova foram de uma visibilidade espetacular, na ausência de luz solar eram os frontais que sobressaíam naquele emaranhado de curvas e contra curvas desenhados num
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Luís Mota vencedor, Campeão |
universo sem fim de vales e montes sem fim que íamos vencendo conforme a progressão. As dificuldades mais sentidas até ao 1º PAC (Posto de Abastecimento e Controlo) foram a passagem pelo leito e margem de um rio que nos obrigou em cerca de 1km a andar em cima de pedras e por vezes dentro de água com as dificuldades inerentes por apenas nos podermos guiar pela luz dos frontais de cada um, a partir daí foi um instante que chegámos ao 1º controlo. Partimos de imediato e pouco depois estávamos já em Alegrete, 2º Posto e o 1º onde se começou a tirar tempos de passagem dos atletas com publicação de imediato na Net. Nada de anormal se passou até aqui e seguíamos inseparáveis no ataque à subida ao ponto mais alto da Serra de S. Mamede, as Antenas, foi aqui que comecei a ficar desconfortável e com um frio terrível, levava apenas duas t-shirts, uma delas muito fina e manga comprida, parei e vesti o corta
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momentos de concentração |
vento mas continuava gelado e o vento já cortava com o frio à mistura, estávamos em plena subida e não dava para correr, eram 9 kms seguidos até chegar a um primeiro cume a 900 metros de altitude, optámos por caminhar e depois de atingir o alto voltamos a descer para depois atingir o ponto mais alto a 1000metros, são 3 kms brutais, para além da subida muito acentuada tínhamos ainda o forte vento que nos batia do lado direito, o frio começava a fazer efeito, 1º foram as mãos ficaram geladas e nada podia fazer porque precisava dos apoios para conseguir subir aquilo, depois foram os pés que começaram a ficar dormentes e com dores, o corta vento pouco ou nada protegia. Aqui começo a reconhecer o quanto fui negligente na preparação do equipamento, tinha deixado as luvas no carro por esquecimento, valeu-me já quase no final depois de praguejar quanto baste o Tiago Martins que levava umas suplentes e me as
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concentrados para a partida |
emprestou, pouco depois estávamos a chegar ao alto, os meus companheiros de aventura vinham logo ali por perto e por certo as dificuldades também era sentidas, começava aqui também para mim um dilema difícil de ultrapassar, tinha-me esquecido de colocar um pouco de vaselina nas partes que geram mais fricção e já ia com dificuldades . Chagámos ao PAC3 e era impossível estar ali muito tempo, via elementos da organização enrolados em mantas para se protegerem, mais à frente uma fogueira fui até lá e aqueci um pouco os pés, as luvas protegiam já as mãos mas a ponta dos dedos doem e ainda vão levar algum tempo a normalizar. Partimos ao encontro do próximo Posto, a descida que se segue é bastante técnica requerendo cuidados especiais não havendo qualquer problema até chegar à estrada, aqui quando me preparava dar os últimos passos escorreguei e fui por ali abaixo uns 2 metros, umas mazelas
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J. Adelino, Luís Miguel, Pedro Quina, Susana Brás |
sem importância que poderiam ser evitadas com a ajuda de colaboradores que ali estavam, bastava ternos desviado um pouco e com certeza não haveria ali quedas, pouco depois a luz do frontal começa a dar a vez à luz solar. Aos 35 kms quando iniciamos uma brutal subida (500m) sinto uma dor, ainda que ligeira na parte de dentro do joelho esquerdo, não ligo muito, até porque durante uma corrida todos sentimos pequenas coisas que depois se vão esvaindo sem darmos conta, vou subindo e a dor não sai e cada vez que levanto a perna esquerda ela acentua-se, quando cheguei ao alto acredito que na descida a dor vai embora, mas não foi e como vi que não era impeditiva prossegui até ao PAC4, nesta altura não quis alarmar os meus amigos que iam ali comigo. PAC4, 40kms dirigi-me aos bombeiros que ali estavam e peço para me colocarem um pouco de gelo no joelho e assim fazem com o melhor da sua boa vontade, surge então o Carlos, fisioterapeuta da organização que por sorte estava ali, identificou o problema, um tendão inflamado, digo-lhe que quero chegar a Portalegre e não queria sair de prova, ele entendeu e enrolou-me uma fita à volta
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Prontos para o arranque |
da perna logo abaixo do joelho pressionando o tendão contra a estrutura óssea permitindo-me assim prosseguir com menos sofrimento., fiquei agradecido e prosseguimos com a promessa de ele estar de novo à minha espera no PAC5 para ver a evolução disto. Os meus amigos com maior ou menor dificuldade ali vêm, a Susana já denotava algum cansaço e o Miguel iniciava uma fase com uma pequena dor num tornozelo, coisa passageira, era ele o motor deste grupo e não podia dar-se ao luxo de falhar, como não falhou ao longo de toda a prova. Foi neste intervalo que tive de me despojar de algo que me afrontava há muitos kms atrás tendo apenas ficado com o calção licra vestido da cintura para baixo, pensava eu que a atroz fricção que sentia ficava resolvida, passado pouco tempo estava bem pior mas como não havia nada a fazer a solução foi seguir tentando ignorar tão mal estar. No PAC5 lá estava o Fisioterapeuta à minha espera,
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Susana Brás |
disse-lhe que aquilo estava a resultar doía mas dava para correr, então ele fez novo reforço e continuei na esperança que isto aguentasse até ao fim. Pouco depois surge Marvão local onde estava o PAC6 a condizer com o km 60, foi muito difícil lá chegar, a subida de acesso ao Castelo é terrível eu já a conhecia do ano passado mas nem isso ajudou muito porque tive de a subir de novo e nada foi mudado desde então. Aproveitei esta paragem (42m) para mudar de roupa e de ténis que foram para ali transportados previamente pela organização, comi um sopa e pouco mais e abalámos serra abaixo por uma calçada interminável (2kms) até sermos um pouco mais à frete para uma Serra que não conhecia na passagem do ano anterior que nos conduziria ao PAC7, à nossa espera estava uma bátega de água que depressa se transformou em granizo, a nossa sorte é que estávamos a chegar e podemos abrigar-nos debaixo
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Luís Miguel |
dos toldo que a organização ali tinha montado, pouco depois abalámos já alimentados dentro do possível, para mim nesta fase (70 kms) o estômago custa a aceitar alimentos e só a muito custo é que consigo contrariar, começamos agora uma fase de ascensão durante 4 kms onde a calçada é de novo o piso tortuoso, agora com mais incidência em blocos de pedra pouco ou nada trabalhados mas que castiga muito, o meu joelho já se arrasta sempre que dobro a perna sinto uma dor muito incómoda e impeditiva, a fricção nas coxas está insuportável mas temos de prosseguir, sigo quase sempre na frente do grupo, chegamos ao alto e avistamos Castelo de Vide, uma Vila muito bonita, descemos um pouco e rodeamos o morro onde está situada a Capela da Penha sempre com a Vila ali a nossos pés. O PAC8 estava ali (77kms) , mas um pouco antes nova carga de granizo cai sobre nós, ficámos gelados, a situação já
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Pedro Quina |
não era boa e agora com a quase impossibilidade de correr jamais iria aquecer. Devido à garga de água que caiu fomos impedidos de subir à Capela e descer pelas cordas por cima de uma zona rochosa, as cordas estavam molhadas e era muito perigoso descer.
A partir daqui até ao PAC9 eram 10 kms a descer e em terreno plano e mais 3 em montanha, mas as forças já eram quase nulas devidos aos diversos fatores que se vieram a desenvolver durante a corrida, não bastou muito tempo para eu de novo parar e cortar com uma navalha a parte interior do calção que vestira em Marvão, mas tal como na situação anterior não resultou, agora não tinha defesas nenhumas e as nádegas começaram a ser o flagelo seguinte. Andámos, andámos onde devíamos correr, eu via a situação do joelho a agravar-se, a dor já descia pela perna, o pé direito de tanto
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A Vitorina sempre muito atenta a tudo |
suportar o esforço que deveria ser partilhado pelos 2 pés começa também a ceder na zona da articulação, valeu-me que aqueles 10 kms eram planos e minoraram as dificuldades de progressão. Estava já a viver um drama que os meus companheiros nem sequer se apercebiam, chegamos por fim à base de nova subida com 3 kms que dava acesso ao PAC 9 (90kms), desde logo verifiquei que não conseguiria subir aquilo, para além da forte inclinação (já com os meus amigos à minha frente) eu dava 2 passos para a frente e 1 para trás, subia agora apenas com a perna direita à frente a outra ia por arrastamento pois já não a conseguia dobrar, foi assim que cheguei ao alto antes de iniciar a descida até Posto, lá no alto os meus colegas esperavam por mim e de imediato lhes disse para continuarem que eu ia ficar no PAC9 quando lá chegasse. Não foi fácil convencê-los mas a decisão foi a melhor para os 3, fiquei feliz por terem conseguido o objetivo e eu feliz fiquei por ter conseguido chegar até ali depois de tantos tormentos passados.
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Com o amigo Isaque Lucena |
Direi finalmente que esta história pouco tem a ver com os meus objetivos iniciais, a partir de certa altura deixa-se de ter prazer na corrida e entra-se numa fase penosa que nada tem a ver com aquilo que pretendemos. Desistir logo seria mais sensato? Creio que não, nunca saberia até onde os limites nos permitem suportar a dor, de outra forma ou com outra atitude se eu o fizesse então não fazia sentido andar (porque gosto) junto daqueles a quem admiro muito, só assim os posso valorizar sentindo também na pele as agruras porque passam os campeões.
Parabéns ao Luís Miguel e à Susana Brás pelo sucesso e grande coragem que tiveram ao longo do percurso, eu era o único que o conhecia por isso na minha consideração são uns heróis, obrigado pela companhia e ajuda que recebi de vós. Enalteço aquele gesto da Susana, quando fiquei para trás aos 88kms, ao me deixar 2 figos e umas dúzias de
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A aguardar a partida |
passas de figo para me alimentar até chegar ao local onde ia desistir (PAC9) emocionou-me e revela também o seu enorme e sensível coração pela sua espontânea ação .
Foram muitos os fatores negativos, creio que aprendi muito com esta experiência, podemos estar muito bem preparados física e mentalmente mas também podemos ser derrotados por coisas tão simples e evitáveis, creio que esta é a melhor conclusão, aprender, aprender sempre, e nunca cometer os mesmos erros, e já agora nem outros!
Parabéns a toda a organização, saí daí todo torcido mas tenho de matar o "borrego" deixado intacto este ano, para o ano volto.
FOTOS
Percurso até aos 90 kms , os primeiros 60kms (Marvão) com leitura Garmin do Luís Miguel e a partir daí começou a funcionar o meu até ao PAC9, onde desisti.
9 comentários:
Companheiro
só acontece aos que partem, será sempre um dos duros do pelotão...
Grande abraço,
António Almeida
Joaquim, para o ano se fores, conta comigo !
E podes ter a certeza que chegando À meta me tivessem informado que estavas em prova, de imediato voltaria para trás e subiria os tais 215 degraus da Penha, mais a serra para ir ao teu encontro e trazer-te até à meta.
Nunca gosto quando me dizem antes duma prova "já fazes isso com uma pernas às costas". Quando menos se espera, acontece algo.
Mas uma coisa é uma prova curta, outra uma com esta dimensão. E foi um grande acto de coragem o que conseguiste aguentar, provando o quanto duro és. Parabéns por (mais) este acto heróico.
Um abraço
Joaquim, sei o que deves ter sentido todos aqueles Kms até parares, aos 90. Já me aconteceu o mesmo e há alturas em que o corpo simplesmente nos diz que Não. Aí, mesmo que o amor com que fazemos a corrida tente disfarçar, não há mesmo volta a dar. Pelo menos fica a satisfação de teres a sorte de contares com companhia. Até à próxima. Abraço
Amigo Joaquim,
Como diz o António: só acontece aos que partem.
Há tanta coisa que pode correr mal, estava a ler a sua subida às antenas e a lembrar-me que eu também já desisti com frio...
Boa recuperação.
Bons trilhos.
Grande abraço.
Olá Joaqim,
"saí daí todo torcido mas tenho de matar o "borrego" deixado intacto este ano, para o ano volto."
Perante esta frase, que mais há a dizer se não dar os parabéns a este bravo companheiro e camarada destas andanças!
Joaquim, tu foste um guerreiro e merecias ser mais um brilhante finalizador! Fica para a próxima!
Um Abraço!
Orlando Duarte
Já foi dito tudo o que haveria para dizer!
São estas coisas que nos tornam mais fortes.
Mas não posso deixar de realçar aqui a mensagem deixada pelo Tigre, este grandioso espírito de solidariedade é algo de único e só ao alcance de uns poucos!
Forte abraço.
Só aqueles que ousam tais desafios, sabem como é difícil não cortar a Meta! Mas como tudo na Vida, muitas coisas nos fogem mas nem por isso, deixamos de as perseguir! Se não foi este ano, será no próximo... S. Mamede espera por si. Ânimo!
Joaquim, apesar das adversidades aguentou 90 km. E quando não dá mais, não faz sentido estarmos a forçar demasiado.
Gostei do relato, mostra uma grande humildade saber admitir os seus erros.
É um homem de coragem! Melhores corridas virão!
Beijinhos
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