quinta-feira, 3 de julho de 2014

Ultra Trail Serra da Freita 2014

Freita... a sempre apaixonante Freita! Interrompi a caminhada mas não a paixão que sinto por ela, as "armadilhas" que lhe montaram impediram-me os planos de a abraçar quando atingisse o Alto da Mizarela! Fica para mais tarde? Creio que não, já não tenho forças para enfrentar as incríveis barreiras impostas pelo homem numa serra, ou conjunto de serras que são a mina dos meus olhos e sonhos incontidos por realizar.
Eram 5,45h quando partimos, transportando eu a confiança na condição física e mental suficiente para enfrentar a extrema dureza, que sabia eu, iria encontrar em todo o percurso.
Cedo perdi o meu companheiro de prova, o Rui Pacheco, logo no 1º km ficou para trás a programar o meu relógio Garmin com a intenção de pouco depois retomar a meu lado a corrida, perdeu de vista o último atleta e quando chegou ao Alto da Mizarela em vez de cortar à esquerda virou à direita descendo o PR7 no sentido contrário da prova, as fitas que nos levariam à meta já lá estavam colocadas e levaram-no ao engano, nunca mais encontrou o pelotão apesar de andar por ali a correr perto de 25 kms.
Os vassouras iam retirando as fitas na cauda do pelotão dificultando ainda mais a sua orientação acabando por regressar ao ponto de partida, optando por mais tarde voltar ao percurso e dar uma ajuda ao Daniel naqueles infernais kms finais.
Até ao rio Paivô tudo correu muito bem, estavam decorridos 18 kms, levava comigo a Anabela Pacheco mas desde que comecei o percurso do rio ela ficou logo para trás, é natural pois era a 1ª vez que ali entrava e eu já ia para a 4ª presença e conhecedor dos segredos que ele encerra. A chuva que caía tornou aquilo um pesadelo, rochas e pedregulhos muito escorregadias as quedas eram quase constantes, numa delas fiquei de costas pendurado por um pé valendo-me ali um amigo que de imediato me auxiliou puxando-me evitando assim males maiores dada a posição em que ficou o meu pé.

Pouco depois chego ao abastecimento dos 21 kms com pouco mais de 4h, partindo pouco depois ao encontro da 1ª subida muito técnica e difícil que nos levaria a percorrer a meia encosta por trilhos muito bonitos até chegar a uma Aldeia muito antiga mas habitada, aqui parei para conversar um pouco com um senhor que me perguntou a idade que tinha, ficou muito satisfeito por saber que era do mesmo ano de nascimento que eu, gostou da nossa passagem por ali, pouco depois estava a iniciar a subida da Drave, muito difícil no seu início, mas continuava a sentir-me muito bem, pouco depois chego ao cimo e dá para observar todo o esplendor da Serra da Freita, dali dava para observar quase todos os passos que iríamos dar nos próximos 10 kms, tão pertinho mas tão longe!
No Abastecimento dos 30 kms encontro o Albino Daniel, tinha desistido por causa de uma queda no rio Frades??? um pouco mais abaixo quando seguia nos primeiros lugares da prova, avisa-me que este rio está pior que o Paivô e sigo rio abaixo, eram mais 2 kms muito difíceis. O caudal deste rio não era muito mas o suficiente para termos o máximo cuidado, a chuva era agora muita e as rochas e lages que tínhamos de pisar estavam muito perigosas, no espaço de 5 minutos fui ao chão 3 vezes, uma das quais rebentou-me um lábio ao cair de chapão e de barriga, os sapatos são de pouca aderência e é uma atleta que andava por perto a dar-me uma ajuda para sair dali, ora seguindo à minha frente baixando-se para diminuir o centro de gravidade ou levando-me os bastões onde precisava de utilizar as duas mãos.
As dores nos joelhos começam a dar sinal de alguma fadiga, os constantes saltos e sobe e desce junto ao rio vão deixando sinais preocupantes, é pois com um certo alívio que pouco antes de chegarmos ao Trilho dos Incas cortamos à direita serra acima por um trilho pouco técnico e que serviu para recuperar um pouco as forças e descansar os joelhos. Gosto daquela volta porque no alto deste trilho está uma fonte de água natural que elementos da organização tiveram a feliz ideia de ali colocar um tubo criando um caudal de água muito agradável para beber e refrescarmos, descemos de novo ao rio e vemos ao mesmo tempo ali em frente os atletas mais adiantados a subir já a interminável subida da Garra, mas para eu lá chegar tenho ainda uma longa e perigosa descida até ao rio, principalmente os últimos 200 metros cuja descida e o seu declive nos metem um respeito enorme, foi ali que dei mais uma queda sem consequências, a sorte continuava a acompanhar-me, já tinha visto dois amigos ficarem pelo caminho motivado por quedas e se calhar muitos mais que desconheço, mais tarde vim a saber de muitas mais desistências se verificaram devido a quedas mais aparatosas, que não foi o meu caso, muitas sim mas fui-me sempre safando.
Desta vez O Trilho dos Íncas foi feito com outrs disposição, o ano anterior tinha ido abaixo exactamente ali devido ao muito calor naquele dia, este ano estava mais fresco e algum vento, embora o sol tivesse aparecido mas nada comparado com a edição da prova no ano anterior. Foi cheio de vontade e com as forças a reduzir que cheguei à Póvoa das Leiras com 9,05h de prova, local de controlo de tempo e o 2º abastecimento líquido e sólido, tinha atingido um dos objectivos que era chegar antes das 10h de prova. Parei pouco tempo, como o controlo do material obrigatório era aleatório fui poupado e segui a caminho do desconhecido.
Em 2012 também parti dali com a esperança de chegar à meta, por pouco não o consegui, o nevoeiro travou-me na Aldeia da Castanheira a escassos 5 kms da chegada, dessa vez o caminho percorrido em nada se assemelha ao que agora tinha pela frente, por isso a partir dali ia totalmente ás escuras e receoso, ainda estranhei que o Alcino Serras me tivesse ali dito repetidamente que tinha 7 horas para fazer 25 kms e chegar à Castanheira, também me pareceu acessível e agradeci o apoio dispensado. Mas a tortura iria começar logo ali quando comecei a subir a "Besta", não porque aquilo é de facto difícil, mas pelas câimbras que comecei a sentir logo que comecei a levantar um pouco mais as pernas para fazer face à forte inclinação e à superação que era preciso fazer para ultrapassar aquela montanha de pedras e pedregulhos, aquele km foi um calvário,
a meio da subida a Otília dá-me um pacote de sal e outro de magnésio em pó, melhoro um pouco e vou muito de vagar a 4 patas para poupar, sempre que o lanço da perna é maior fico agarrado e procuro outros pontos de apoio mais curtos, a meio já tinha quase uma hora gasta do pouco tempo que podia desperdiçar, um pouco mais acima mais um casal de amigos se aproxima e têm a amabilidade de me darem mais uma ampola de magnésio chamando-me a atenção que no abastecimento existiam produtos que devia ingerir para evitar o aparecimentos dos problemas de câimbras, aceitei o raspanete pela razão que lhe assistia, a "besta" ainda não terminara mas 1,30h depois atingia o topo daquela subida que me pareceu espectacular debaixo de um arvoredo muito húmido e com água a correr constantemente junto dos nossos pés, não fora as câimbras nas coxas e por certo aquilo tinha sido muito divertido.
No planalto e já na descida para Manhouce falta-me a água, por ali não havia nascentes tendo eu encontrado mais água quando descemos à base da serra onde se encontrava mais um riacho de água de nascente vindo da montanha. Os 50 kms estavam mesmo ali junto a um edifício abandonado e com escritos para venda ou aluguer que me pareceu uma escola, por certo se trata de mais um acto criminoso do "nosso" governo nesta ânsia desmesurada de encerrar escolas para poupar mais alguns cobres e colocar mais funcionários no desemprego. Encontrava-me bem aproveitei o abastecimento e cuidei melhor das minhas necessidades, nomeadamente o sal e açúcar e segui de novo à procura dos 10 kms seguintes que eram uma incógnita. Tinha sido informado que não passaríamos pelo rio mas passado pouco tempo somos encaminhados para ele sem apelo nem agravo, resigno-me e sigo conforme determinado, longa descida  e breve passagem pelas margem sem irmos à água, conforme se desce também se sobe, e de novo a brutal subida que é feita a passo muito lento,
os joelhos já doem de forma permanente e é com bastante sacrifício que vou progredindo, até que chegado a um ponto já bastante elevado e quando pensava que já íamos a caminho da Lomba viramos à esquerda e pouco depois nova descida ao rio por caminhos muito sinuosos e técnicos, desço agarrado ás árvores para auxiliar e poupar um pouco mais os joelhos, levava os bastões mas só me estorvavam pois precisava das duas mãos, ia ainda acompanhado de um amigo que por ali ficou perto de mim mas também sentia sérias dificuldades, mais abaixo cruzo-me com um atleta que vem subindo muito queixoso, tinha caído e vinha acompanhado de um elemento da organização até chegar à próxima Aldeia, a 2kms, pois de outra forma não conseguiria sair dali, mais abaixo as dificuldades aumentaram para mim com o aparecimento de cordas face ao perigo que representava descer naquele local, para agravar ainda mais aquilo o chão estava muito escorregadio e as cordas untadas com lama, era uma dança constante em cerca de algumas centenas de metros por ali abaixo.
No fundo da descida lá estava de novo o rio, aqui esperavam-nos 2 elementos em cima de duas rochas para nos ajudar a passar de uns pedregulhos para os outros, se estivéssemos sozinhos não sei se conseguiríamos passar por ali. Cheguei ali já destroçado, sem forças e muito dorido, devia já ter deixado para trás cerca de 55 kms, comecei então a fazer contas e cheguei à conclusão que não conseguiria chegar à Lomba com 15 horas de prova, dali até lá era uma serra com uma subida brutal onde os socalcos eram permanentes e difíceis de subir, o meu companheiro de prova abalou logo a seguir ao rio e palmilhei aquilo por ali acima com a esperança de a qualquer momento avistar a Lomba, quando isso acontece já tinha tomado a decisão de desistir, agora só queria ali chegar mas começo a ver que as fitas me levam de novo para baixo por caminhos muito tortuosos até chegar a outro ribeiro, aqui paro e sento-me um pouco na rocha e refresco-me, já pouco importa o tempo que falta, só quero é chegar à Lomba, mas para lá chegar mais um longa subida tive de enfrentar, agora mais suave é certo mas a inclinação continua brutal, por meio de escadarias e muitas hortas consigo finalmente chegar ao alcatrão e pouco depois ao abastecimento.
Estava esgotado e cheio de frio, 16,15h para chegar ali, tinha ainda 3,30h para fazer 10 kms até à meta, mas para isso tinha de gastar apenas 45 minutos para chegar à Castanheira (5kms) com 3 kms de subida brutal até chegar ao planalto, tarefa impossível daí a desistência logo ali porque avançar até à Castanheira seria um esforço inglório que não serviria para nada, a eleminação ás 17h era mais que certa. Na Lomba tive logo apoio do pessoal que lá estava, uma manta de pano e a minha manta de sobrevivência foram suficientes contra o frio, comi pouco porque já lá estava uma carrinho para nos levar para o local de chegada, comigo foram mais 9 e por certo que outros que vinham mais atrás também me seguiram as pisadas. Queria muito acabar aquela prova mas na parte final fui caindo na realidade e conformei-me aos pouco conforme ia enfrentando as dificuldades, A Freita é aquilo tudo mas é também aquilo que o homem quer que ela seja, para o bem e para o mal.
Obrigado ao Daniel e ao Rui pela companhia e apoio que me deram, à Susana , minha filhota por de vez em quando me despertar em plena serra, ao míster Fernando por o sentir bem perto através do toques que ia ouvinho alertando-me para a existência de mais um empurranzinho a caminho da meta, aos organizadores e apoiantes pela simpatia demonstrada. A apreciação global da prova no que diz respeito ao trajecto não o faço, fica para mim, agradecendo a todos os que me felicitaram e apoiaram pelo esforço despendido.

6 comentários:

Jorge Branco disse...

Mas um fantástico relato de um grande e experiente campeão que sabe fazer o mais difícil: avaliar quando é hora de desistir!
Outros desafios virão mesmo que não passem pela Freita. A grande magia da corrida é isso mesmo o podermos adaptar os objectivos e a desafios as nossas capacidades actuais.
Na corrida, em cada fase da nossa vida, vamos construindo adaptados os nossos objectivos e sonhos ao momento em que vivemos.
Forte abraço campeão!

Ricardo Baptista disse...

Brutal, nunca fiz a Freita, mas depois de ler um relato deste as pernas ficam logo "em pulgas"...
Grande abraço.

(Falando baixinho: Não estou convencido que não haja mais ataques à freita por parte do amigo...)

joaquim adelino disse...

Obrigado Jorge, a avaliação foi feita in-estrémis, quando já havia pouco para dar, dá que pensar que temos uma barreira de 3,30h pela frente para terminar os 10 kms que faltam mas que pelo meio existe uma barreira de 45 minutos para fazer 5 kms. (65 kms) tornando assim a missão impossível de concretizar.
Para o ano esta prova terá 100 kms, veremos se ela se enquadra dentro das minhas capacidades de então. Abraço

joaquim adelino disse...

Olá amigo Ricardo, esta espera por ti, é o rei dos trails pelas dificuldades e também das maldades que introduzem, como sei que a montanha para ti também não tem segredos um dia aparecerás para a enfrentar. Quanto a mim acabou nesta versão de 70 kms, a próxima tem já os 100 kms mas contentar-me-ei por uma mais pequena se para isso tiver oportunidade de me deslocar. Abraço

Carlos Cardoso disse...

Grande Joaquim....mesmo sem ter sido concluída, foi mais uma grande prova, cheio de dificuldades e com uma decisão sensata mas com certeza difícil de tomar. O texto é arrebatador. Parabéns pela sua prova e pelo magnifico texto!! Aprendo sempre alguma coisa nos seus escritos...obrigado.
Abraço

joaquim adelino disse...

Obrigado pelo ânimo das palavras, Não quis que me eliminassem por excesso de tempo, isso significava ir-me a arrastar até aos 65 kms de forma inglória, não é o meu género, pode parecer absurdo mas parei ali pelo respeito que a Freita me merece e é assim que quero recordá-la sempre, volte ou não a visitá-la. Abraço